Entenda como funciona o fair play financeiro no futebol europeu – e quais clubes estariam ameaçados se o sistema existisse no Brasil

18/02/2020

O sistema que baniu o Manchester City de duas edições da Liga dos Campeões foi lançado pela Uefa em 2009 e deixou o mercado europeu mais saudável. CBF deve lançar mecanismo em breve

Poucos assuntos são tão maltratados no futebol quanto o fair play financeiro. Quando não são as teorias da conspiração, vêm as conclusões equivocadas pelo desconhecimento de como o mecanismo funciona e para que serve - ainda mais depois que acontece um caso controverso e gigantesco, como o banimento do Manchester City da Liga dos Campeões pela Uefa por dois anos.

Quais são as regras? Haverá um sistema similar no Brasil? Caso tivéssemos as mesmas regras do futebol europeu, nossos clubes passariam pela prova? Baseado no estudo do economista e consultor Cesar Grafietti - que dedicou o último ano ao estudo do fair play financeiro a partir de Milão, na Itália, em contato direto com dirigentes do futebol europeu -, o blog tenta esclarecer as principais dúvidas.

Para que serve o fair play financeiro?

Para melhorar a condição financeira dos clubes de futebol e tornar o mercado como um todo mais estável e sólido. Caso você prefira o palavreado oficial, o trecho abaixo consta no documento em que a Uefa explica o sistema de licenciamento e fair play financeiro.

"a) Para melhorar a capacidade econômica e financeira dos clubes, aumentando a transparência e a credibilidade deles;
b) Para colocar a proteção necessária a credores e garantir que clubes cumpram suas obrigações com funcionários, impostos e outros clubes;
c) Para introduzir mais disciplina e racionalidade nas finanças dos clubes de futebol;
d) Para encorajar clubes a operar com base nas receitas deles;
e) Para encorajar o gasto responsável pelo benefício de longo prazo do futebol;
f) Para proteger a viabilidade e a sustentabilidade do futebol europeu no longo prazo."

O sistema tenta reequilibrar o futebol?

Não. A desigualdade financeira é um problema evidente no futebol europeu, com a concentração de dinheiro em alguns poucos clubes em detrimento da maioria, tendo como consequência mais grave a perda da competitividade e a previsibilidade de campeonatos nacionais. Mas esta não é uma questão endereçada pelas regras do fair play financeiro.

Fair play financeiro é novidade?

Não. A Alemanha adota regras para estimular a boa administração financeira desde 1962, por meio da Bundesliga. Na Itália, o sistema começa a vigorar em 1981 por força de legislação. Na Holanda, o fair play financeiro surge em 2003 pelas mãos da KNVB - a federação nacional.

A Uefa cria seu próprio sistema de licenciamento e fair play financeiro em 2009, a partir daí com regras para todo o continente europeu, num momento em que os clubes passavam por mau momento financeiro. O mundo inteiro passava por uma crise econômica, na verdade.

Quais são as regras ditadas pela Uefa?

  • Prejuízo máximo de 5 milhões de euros por no máximo três anos, podendo chegar a 30 milhões de euros, se houver aporte de recursos por parte do acionista para cobrir a diferença. Custos com infraestrutura, categorias de base e futebol feminino são desconsiderados do cálculo para incentivar esse tipo de investimento
  • Acionistas ou empresas que façam parte do mesmo conglomerado - leia-se: partes relacionadas - podem injetar dinheiro na operação desde que o aporte não seja maior do que 30% sobre a receita bruta
  • A auditoria externa precisa concluir, em seu parecer sobre o balanço financeiro, que não existe risco de descontinuidade operacional
  • O patrimônio líquido deve ser positivo. Ou seja, o clube precisa ter mais ativos (bens) do que passivos (dívidas)
  • O endividamento não pode ser maior do que 30 milhões de euros. A quantia também não pode representar mais do que sete vezes o EBITDA - isto é, a diferença entre receitas e custos operacionais, antes de considerar impostos, depreciações e amortizações
  • O investimento na contratação de jogadores não pode ser maior do que 100 milhões de euros na diferença entre compras e vendas

Por que o Manchester City foi punido?

O Manchester City foi comprado pelo atual proprietário em 2008 e pertence majoritariamente à Abu Dhabi United Group, conglomerado dos Emirados Árabes que tem como controlador o sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan, por sua vez membro da família real de Abu Dhabi.

Eis que o clube recebeu patrocínio da Etihad Airways, companhia aérea que pertence ao mesmo conglomerado. A Uefa entendeu que o patrocínio, muito acima do valor praticado no mercado, foi feito para burlar a regra que limita o aporte de recursos por parte de acionistas.

Por que o PSG não foi punido?

O caso é muito parecido com o anterior. O Paris Saint-Germain foi comprado em 2010 e pertence ao Qatar Sports Investiments, um braço esportivo do Qatar Investiment Authority (QIA), que por sua vez representa o governo do Qatar nos negócios que realiza pelo mundo.Quando o PSG comprou os direitos de jogadores como Neymar e Mbappé por valores muito elevados, contou com dinheiro vindo do Qatar por meio de um patrocínio acima de mercado da Qatar Tourism Authority, supostamente para divulgar o país como destino turístico.

O clube deveria ser punido pela Uefa. Sem o dinheiro do patrocínio, o PSG teria prejuízo maior do que o permitido pelo fair play financeiro, além de ter superado o limite para aportes de partes relacionadas. Mas a confederação bateu cabeça e perdeu os prazos para impor as sanções.

No geral, o fair play financeiro funcionou?

A Uefa deu um tempo razoável para que os clubes se ajustassem às regras sobre as finanças. O fair play financeiro foi formulado em 2009 e aprovado no ano seguinte, mas a fiscalização e a penalização só começariam para valer em 2012. A partir deste ponto, o futebol europeu viu seus clubes reduzirem prejuízos gradativamente. O primeiro lucro só aconteceria em 2017. A confederação credita a melhora ao fair play.

O Brasil vai ter fair play financeiro?

A CBF tem planos para implementar seu próprio sistema ainda em 2020, mas o anúncio oficial ainda não foi realizado pela entidade. Cesar Grafietti, inclusive, foi contratado como consultor para estudar os mecanismos europeus e desenhar um modelo para o futebol brasileiro.

Quais clubes poderiam ser punidos?

Enquanto a CBF não anunciar as regras do fair play financeiro para o país, não haverá clareza sobre ajustes necessários e riscos enfrentados pelos clubes brasileiros. Num exercício de lógica, caso as mesmas regras europeias fossem aplicadas aqui, muitos teriam problemas.

  • A maioria dos clubes possui pareceres de auditorias externas que apontam para o risco de descontinuidade operacional
  • A maioria dos clubes possui patrimônio líquido negativo - quando dívidas são maiores do que todos os bens, contratos etc
  • Apesar de ser uma exigência do Profut, muitos clubes registram deficits (prejuízos) superiores ao limite imposto pela legislação
  • No caso do Bragantino, os investimentos feitos pela Red Bull, com dinheiro vindo da Áustria, quebrariam a regra que limita em 30% do faturamento os aportes de partes relacionadas. A empresa precisaria repensar sua estratégia se houvesse esse mecanismo no Brasil

Especificamente no quesito sobre o patrimônio líquido, tendo como base os balanços patrimoniais referentes a 2018, os mais recentes disponíveis, mais da metade dos clubes do Campeonato Brasileiro reprovaria.

Quais casos não seriam punidos?

Novamente, este é um exercício de lógica que toma como base as regras praticadas pelo futebol europeu. O Brasil só terá ciência dos desafios de um sistema de fair play financeiro depois que a CBF anunciar as regras do modelo que escolheu. Mas podemos lembrar casos recentes.

  • O empréstimo do ex-presidente Paulo Nobre ao Palmeiras não causaria riscos ao clube, apesar de o credor ser também presidente da associação, pois tratava-se justamente de um empréstimo - que inclusive já foi integralmente pago ao ex-dirigente
  • O patrocínio da Crefisa ao Palmeiras, independentemente da discussão sobre estar acima do valor de mercado, não causaria problemas. A empresa não é acionista do clube de futebol, nem faz parte de um grupo de empresas que também inclui a associação
  • Os investimentos feitos pelo Bragantino na compra de jogadores não seriam um problema, caso tivéssemos uma limitação de R$ 100 milhões para a diferença entre compras e vendas de atletas - o clube investiu cerca de R$ 80 milhões na janela de transferências
  • Os investimentos feitos pelo Flamengo na compra de jogadores também não seriam problemáticos, pois o clube provavelmente estaria positivo na diferença entre compras e vendas. As chegadas de Léo Pereira e Gabigol seriam compensadas pela venda de Reinier
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